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sábado, 30 de maio de 2020

Lições de Emaús

          Conheci o Pe. Bruno Sechi ainda muito pequeno, tão pequeno que na memória não trago datas, apenas momentos pontuais de celebrações que participei com ele no Benguí, bairro que ele escolheu para deixar o maior legado de sua vida: a República de Emaús, um movimento surgido na década de 70 que hoje atende mais de 600 crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Emaús é o lugar do encontro. Caminhando com Jesus, sem o reconhecerem, os discípulos entristecidos andavam amargurados e narravam ao "sujeito desconhecido" todas as coisas ocorridas nos últimos dias (cf. Lc 24,13ss.), a paixão e morte de seu Mestre, o sepulcro vazio, a busca pelo corpo de Jesus. 
          Também no Emaús do Benguí há o encontro, há a partilha. Algumas vezes, eu mesmo fui lá entregar as "coisas inúteis" que em casa não mais serviam, mas lá ganhavam novo sentido e, mais que isso, dava a um jovem que poderia estar na rua, a possibilidade de aprender um ofício, de gastar seu tempo em prol das bos coisas da vida. No Emaús do Benguí, porém, não havia a tristeza pela partida do Mestre. Não discutiam o sepulcro vazio. Ao contrário, se gastava o tempo enchendo os galpões e salas com televisores, antenas, rádios, demais eletrônicos, peças de carros, lixo reciclável e histórias! Muitas histórias! Se naquele fim de tarde os discípulos caminhavam com o Mestre sem o reconhecê-lo, no Emaús do Benguí todos reconheciam o Mestre que caminhava a passos lentos e firmes, quando não ficava a contemplar sua obra da sacada de sua casa por entre tantas folhas e plantas que lhe rodeavam. 
Pe. Bruno na celebração de 49 anos de Sacerdócio na Paróquia Rainha da Paz (Benguí), em junho de 2017. Foto: Leonardo Monteiro

          Quando Jesus, ainda 'desconhecido' pelos dois discípulos, pergunta: "que palavras trocais pelo caminho?", Cléofas imediatamente - num tom ríspido, eu acredito - questiona: "acaso sois o único forasteiro em Jerusalém que não sabeis o que lá aconteceu nestes dias?". Ora, àquela época imaginem só a dificuldade que era de comunicação entre aquele povo. De qualquer modo, mesmo que não fosse Jesus ali com eles, poderia ser que fosse um desavisado, alguém alheio às informações da época. No Emaús do Benguí, porém, a notícia se espalhou rápido: Pe. Bruno Sechi faleceu. O imenso bairro periférico de aproximadamente 30 mil habitantes formou um coro uníssono de lamentos e tristeza. 
        Ninguém ainda consegue imaginar como será, a partir de agora, passar em frente ao movimento, contemplar aquele belo jardim de plantas tropicais, idealizado por Pe. Bruno para conter - veja só! - o lixão que estava sendo criado no muro de sua cidadela, sem poder contemplar junto com as flores aquele sereno sorriso de um octogenário que transbordava vida.
          Emaús traz ainda outra lição: a do cuidado com o anônimo. O dia declinava e aqueles cristãos continuavam a caminhar com o "Jesus não-reconhecido". Não sabiam quem era Aquele Homem, era um simples anônimo que com eles caminhavam. "Aproximando-se do povoado para onde iam, Jesus simulou que ia mais adiante. Eles, porém, insistiram, dizendo: 'Permanece conosco, pois cai a tarde e o dia já declina. Então entrou para ficar com eles". (cf. Lc 24,28ss.). Esse trecho me faz lembrar os anônimos que Pe. Bruno acolheu em sua casa. Quantos e tantos meninos e meninas que ele sequer sabia de onde vinham, mas por saber para onde podiam ir, acolheu em sua obra, partilhou com eles do seu pão, da sua vida, do seu trabalho...
Pe. Bruno na varanda de sua casa. Foto: Reprodução/Facebook.

          Naquele Emaús distante de Jerusalém, ao partir o pão os discípulos reconheceram Jesus (cf. Lc 24,30). No Emaús do Benguí, certeza eu tenho que a distância agora de Jerusalém é mínima. Mas, me refiro à Jerusalém Celeste que nós, acredito, queremos habitar um dia. Hoje, Pe. Bruno chega lá para contemplar a face de Deus e prestar contas do bem que ele fez. Em um vídeo divulgado de uma Missa com o Movimento Familiar Cristão, o próprio falando sobre a morte, diz: "Confiemos nesse Deus que vai escolher o melhor dia de nossas vidas para nos encontrarmos com Ele, não tenhamos medo da morte. Nós queremos fazer da nossa vida um instrumento de ajudar o próximo, isso que vale. Acumular dinheiro? Ninguém leva nada. Levaremos, nós, aquilo que fizemos de bom e de mau", disse ele.
          Por fim, a experiência de Emaús, caro leitor, é a experiência de Ressurreição, de abrir os olhos encegueirados pelo pessimismo para contemplar uma realidade gloriosa que nos espera. Pe. Bruno nos precedeu nesta páscoa, mas deixa este legado. O Emaús que ele fundou significou ressurreição para vida de tantos e tantos jovens, incontáveis pessoas tiveram ali uma transformação, uma conversão. Diante desta pandemia, o falecimento do Pe. Bruno provoca também um convite a isso: transformar o olhar, a vida. Perceber que mesmo tendo tudo para dar errado, podemos usar de nossos talentos para re-significar a humanidade com solidariedade, com testemunho evangélico, com amor ao próximo. Não adianta se trancar em casa e querer transformar o mundo com um mídia-ativismo, é necessário mesmo transformar o mundo a partir do coração de cada um de nós...
Pe. Bruno se foi, mas ficou. Ficou na história do estado, do Brasil e do mundo. Pessoas como ele farão falta nesta humanidade, mas agora vamos continuar escrevendo capítulos de nossa história com ele olhando por nós do céu. Essa é a esperança!

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Fátima: o lugar do cuidado de Deus


            Depois de uma exaustiva semana de trabalho entre Lisboa e a charmosa cidade da Nazaré, minha aventura em Portugal se aproximava do fim. Por sorte, ganhei dois dias e meio de folga. Fiquei a semana toda planejando a folga e, chegado o domingo, ainda estava indeciso. De última hora fiz cálculos de tempo, distância (pra quem vive num Brasil, calcular distância em Portugal não é uma dificuldade), e contei com a preciosa ajuda da jornalista Gracielle e do Jorge, cinegrafista da Tv Canção Nova. Ambos moram em Fátima. Ela é do Rio de Janeiro, ele é 'nascido e criado' em Fátima. Decidi pegar a carona deles. Não sabia onde ficar, e a Canção Nova me acolheu na sua casa de missão, cujo nome é: "Casa de Maria". Não bastasse ir à cidade, eu me hospedaria também na Casa de Maria. Entendi que meu destino estava seguro! 
            Com dicas preciosas de quem mora na cidade, fui chegando em Fátima no final da tarde daquele domingo, 26/01. Fazia uma tarde linda. Linda e frienta! Os termômetros marcavam 10ºC. Como o Santuário de Fátima é aberto 24h, me deixaram – porque ainda tinham que trabalhar – em Aljustrel.
            Aljustrel é uma vila que dá a impressão de ter parado no tempo. Lá ainda existe a casa onde moraram os Pastorinhos. Entrei na casa dos pais de Francisco e Jacinta. Encontrei a sobrinha dos dois santos, administradora de uma lojinha (em Fátima há lojinhas por todos os cantos). Acostumada com tietagens, não hesitei em pedir-lhe uma foto. Depois entrei na casa e fiquei profundamente tocado com a simplicidade, a humildade, a pobreza do lugar. Cada passo que eu dava, meu coração suspirava: “tão pobre e tão rica, feliz casa!”. Os cômodos eram estreitos, o piso de madeira era nitidamente novo, reformado para acolher melhor os turistas.
            Um momento merece muito destaque, caro(a) leitor(a): o momento que entrei precisamente nos quartos onde nasceram e morreram Francisco e Jacinta. Ambos viveram somente dez anos “cá na terra”, como diriam os portugueses. Ao entrar no quarto dele, senti profundamente a santidade daquele lugar, espaço pequeno, outras camas (não eram quartos individuais). Não segurei o choro, deixei no moderno piso, da arcaica casa, as minhas lágrimas, preciosas para mim, derramadas sem que eu entendesse o porquê. Rezei! Saí e me apressei.
            Na casa de Lúcia senti o mesmo espírito, mas, de modo diferente. Fui movido pela curiosidade. Ao lado da casa, há um museu que conta a história social daquele povo: como viviam, se vestiam, etc. De repente, 18h e tudo se fechou. Ensaiei subir ao Santuário de Fátima a pé (cerca de 2km) pelo caminho da Via Sacra, conforme Jorge e Gracielle me indicaram. Porém, o espírito brasileiro gritou, fiquei “cabreiro” com aquele lugar soturno, o medo me impediu de avançar as estações. Mas, e agora, como sair dali? As lojas já estavam todas fechadas, ninguém na rua. Fiquei nervoso! “Nossa Senhora, como agora vou sair daqui?”, clamava inquietamente no meu coração. O “Uber” não funcionava há dias, os táxis lá só funcionam se você liga e pede um. Daí notei uma loja fechada cor três jovens irmãos lá dentro fazendo o trabalho da contabilidade. Hesitei, mas pedi ajuda. Estava com preconceito: “esses europeus são duros, vão querer que o brasileiro solitário se lasque”. Ledo engano! Eu não estava na casa e a cidade de Maria, o que temer? Foram totalmente simpáticos, confesso que fiquei muito surpreso (ao longo do que já tinha passado em Portugal, já estava com um certo trauma do jeito europeu de tratar as pessoas, mas isso é assunto para outra crônica, talvez!). Chamaram-me um táxi e fui ao Santuário (Basílica). Era exatamente 18h40. Tudo escuro! Embora febril, não sentia fome e nem cansaço, só desejo em descobrir tudo naquele lugar. 
            Comecei pela moderna Basílica da Santíssima Trindade, datada de 2007. A saber, é o quarto maior templo católico do mundo: abriga 8,6 mil pessoas sentadas, possui 18 metros de altura e outros números e detalhes que alongariam este artigo. Ali fiquei pouco tempo, mas óbvio, fiz fotos. Dos pocuos presentes, havia um casal de orientais, e nessa hora a gente lembra com saudade das aulas de inglês do fundamental. “Excuse me”, balbuciei. Ela comentou algo com o marido na sua língua. Será que me xingou?! Bom, “please, photo?!”, falei entregando o celular com a câmera já ligada. Foto garantida, saí da Basílica gargalhando com medo de estar sendo um bobo, mas com nossa Mãe, quem se importa de pagar um mico desses? 
            A grande verdade, meus amigos, é essa: eu estava mesmo me sentindo em casa. Olha, em poucos lugares na vida eu me senti tão leve como ali. Andava sem sentir o chão, vivia um sonho! Saindo da Basílica, deparei-me com a Basílica de Nossa Senhora do Rosário, aquela que eu só via como cenário de fundo nos grandes eventos de Fátima. Lágrimas novamente, mais alguns passos para atravessar a enorme praça que tinha, ao meio, o Sagrado Coração de Jesus de braços abertos e, ao seu lado, a famosa Capelinha das Aparições. Preferi ir logo na Basílica onde ocorria a Santa Missa. Lá estão os túmulos dos pastorinhos, novamente rezei emocionado entregando minha vida a Nossa Senhora, recomendando minha família, meus amigos, nossos governantes, nossos sacerdotes, nossa Arquidiocese de Belém, enfim. 
            Saindo de lá, fui à Capela das Aparições. Local exato onde em 13 de maio de 1917 apareceu a Virgem Maria. Ali tem uma bonita imagem – cujo centenário celebra-se neste ano, – que foi esculpida conforme o relato dos pastorinhos para ficar o mais parecida possível com as feições contempladas pelos olhos deles. E eu, olhava para aquela imagem e pensava a mesma coisa, “agora são meus olhos que tentam contemplar a tua beleza!”. Sentado à espera do início do terço, abusei da imaginação dos meus sentidos. Fiquei pensando como devia ser a voz de Nossa Senhora, a imaginei falando português, será que havia algum sotaque? Depois fiquei pensando como era aquela Cova da Iria, feita de campo, com árvores, um terreno irregular… Que cheiro exalava dali? O perfume floral. Olhei ao redor da imagem, quantas e quantas flores a rodeavam. Poderia aplicar aqui um pensamento do escritor Vitorino Nemésio, que diz: “Em Fátima a nossa humanidade passou a valer mais”. É fato, ali despertei muito mais que meus sentidos, despertei um coração que dentro de mim batia. A temperatura tinha caído muito, já faziam 7ºC e meus melhores cobertores estavam na mala. No corpo, o frio me maltratava (e eu já vinha há dias doentes, até mesmo com febre), mas o meu coração estava totalmente aquecido. Isso me fazia suportar qualquer intempérie que surgisse. 
            Deveria ser meu último momento em Fátima. A ideia era dormir na “Casa de Maria” e, cedo, comprar umas lembrancinhas e partir para “ganhar o dia” na famosa cidade do Porto (de onde eu retornaria para Brasília). Era esse o plano. Dormi, com muita dificuldade por conta do frio (4ºC). Debaixo de tantos panos e, até de calça jeans, me gabei de estar dormindo uma noite em Fátima, no lugar cujo nome me falava tanto.
            No outro dia, não tão cedo, acordei com vozes na casa. Dormi numa casa “vazia” e acordei com a mesma sendo povoada. Eram poucos membros da Comunidade Canção Nova que cuidam daquela que é uma casa de retiros, encontros. Agradeci a confiança, bem brasileira, de abrir as portas de casa para um desconhecido, me responderam: “nossa Mãe é uma só, e no colo dela a gente se reconhece”. Profundo!
            Avante. Fui fazer as tal comprinhas. Não resisti de passar nos fundos do Santuário de Fátima. Novamente entrei. Percorri aquele lugar e fui descobrindo cada cantinho que, na noite anterior, me tinha escapado o olhar. Daí a programação começou a desandar e o Porto me foi ficando distante. Depois eu descobri que minha âncora estava mesmo em Fátima. Mas, o fato é que fui pedir ajuda no Pronto-Socorro do Santuário. Não estava me alimentando bem por conta de gengivas inflamadas e a febre não tinha passado. A médica ainda não tinha chegado e me pediram pra esperar. Impaciente como sou, esperei até demais. Desisti e fui atendido por uma enfermeira que lá estava. Com pressão e temperatura um pouco elevada, ela me sugeriu ver a questão da gengiva num odontólogo mais adiante. Saí de lá caçando o dentista. Não demorou e eu o encontrei. Entrei no consultório com a dor na boca e no bolso, meus olhos procuravam a tabela de preços da consulta. Não havia nada. A atendente me disse que cada consulta tinha um preço, naquele jeitinho brasileiro eu disse, “ah, bom, é só uma gengiva inflamada, nada demais”. Ela disse, “certamente o doutor lhe pedirá 50 euros”. Aí, meus amigos, caí na tentação clássica do turista brasileiro de avaliar quanto seria isso em reais. Daria em torno de R$ 240. Socorro! A vontade era correr dali, mas o bom senso me pediu para ficar. Em Fátima há imagem da Virgem por todo canto, e no consultório não era diferente. Havia uma imagem dela, eu olhei e pedi que ela me ajudasse que não fosse nada grave e que minha carteira não sofresse um abuso. O dentista examinou-me, deu um ralho pela minha demora em buscar socorro e passou o receituário médico. Agradecido e, ainda, nervoso, perguntei quanto custou a consulta. “Nada, já está pago, fique tranquilo e vá logo comprar esses remédios!”, disse. Imediatamente eu já sabia quem pagou a consulta. 
            Com remédios em mãos, pude embarcar para o Porto já no final daquela tarde que, por mim, não acabaria. Foi minha última tarde em Fátima. Chovia uma “garoa” quando saí de lá. Puxando a mala, decidi ir andando até a rodoviária, misturei, por fim, minhas lágrimas àquelas gotículas que caiam do Céu onde apareceu a Virgem Maria, conforme cantamos.
            Pude testemunhar, e encerro esta crônica assim, que Fátima é, como diz o Cardeal Tolentino de Mendonça, “um lugar de lentidão onde se dialoga com a crise e de onde se sai mais humano”. Não fui mais o mesmo após sair dali. A Virgem de Fátima sempre venerada em casa, porque minha mãe é consagrada a ela, nunca foi tão próxima de mim, ainda que todos os anos, desde pequeno, eu caminhasse com minha vela acesa na bonita procissão em Belém que agrega mais de 250 mil pessoas. Bastou-me dois dias em Fátima e eu retornei para o berço da minha devoção mariana de infância. E tal como em 1917, no contexto da I Guerra Mundial quando Nossa Senhora apareceu, ainda hoje Fátima continua a mostrar o cuidado que Deus tem pela humanidade, sobretudo nos momentos em que esta se percebe frágil e vulnerável.